“— Uma das coisas que mais me preocupam — diz Floriano — é descobrir quais são as minhas obrigações como escritor e mais especificamente como romancista. Claro, a primeira é a de escrever bem. Isso é elementar. Acho que estou aprendendo aos poucos. Cada livro é um exercício. Vocês devem conhecer aqueles versos de John Donne que Hemingway popularizou recentemente, usando-os como epígrafe de um de seus romances. É mais ou menos assim: Nenhum homem é uma ilha, mas um pedaço do Continente… a morte de qualquer homem me diminui, porque eu estou envolvido na Humanidade… et cetera, et cetera.
Tio Bicho cerra os olhos e, parodiando o ar inspirado dos declamadores de salão, murmura eruditamente:
— “And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.”
— Estive pensando… — continuou Floriano. — Nenhum homem é uma ilha… O diabo é que cada um de nós é mesmo uma ilha, e nessa solidão, nessa separação, na dificuldade de comunicação e verdadeira comunhão com os outros, reside quase toda a angústia de existir.
Irmão Zeca olha para o soalho, pensativo, talvez sem saber ainda se está ou não de acordo com as ideias do amigo.
— Cada homem — prossegue este último — é uma ilha com seu clima, sua fauna, sua flora e sua história particulares.
— E a sua erosão — completa Tio Bicho.
— Exatamente. E a comunicação entre as ilhas é das mais precárias, por mais que as aparências sugiram o contrário. São pontes que o vento leva, às vezes apenas sinais semafóricos, mensagens truncadas escritas num código cuja chave ninguém possui.
Cala-se. Conseguirá ele agora estabelecer comunicação com essas quatro ilhas de clima e hábitos tão diferentes dos seus?
— Tenho a impressão — continua — de que as ilhas do arquipélago humano sentem dum modo ou de outro a nostalgia do Continente, ao qual anseiam por se unirem. Muitos pensam resolver o problema da solidão e da separação da maneira que há pouco se mencionou, isto é, aderindo a um grupo social, refugiando-se e dissolvendo-se nele, mesmo com o sacrifício da própria personalidade. E se o grupo tem o caráter agressivo e imperialista, lá estão as suas ilhas a se prepararem, a se armarem para a guerra, a fim de conquistarem outros arquipélagos. Porque dominar e destruir também é uma maneira de integração, de comunhão, pois não é esse o espírito da antropofagia ritual?
Edu salta:
— Toda essa conversa não passa duma cortina de fumaça atrás da qual procuras esconder a tua falta de vocação política, a tua incapacidade para a vida gregária.
— Por mais absurdo que pareça — diz Rodrigo — desta vez estou de acordo com o camarada Eduardo.
Floriano sorri. Os apartes, longe de o irritarem, o estimulam, pois tiram à sua exposição o caráter antipático e egocêntrico de monólogo. Prossegue:
— Para o Eduardo o Continente é o Estado Socialista, ou a simples consciência de estar lutando pela salvação do proletariado mundial. Para outros, como para o Zeca, a Terra Firme, o Grande Continente, é Deus, e a única ponte que nos pode levar a Ele é a religião ou, mais especificamente, a Igreja Católica Apostólica Romana. Há ainda pessoas que satisfazem em parte essa necessidade de integração simplesmente associando-se a um clube, a uma instituição, uma seita.
Bandeira aparteia:
— Por exemplo, o Rotary Club ou a Linha Branca de Umbanda.
— O que importa para cada ilha — prossegue Floriano — é vencer a solidão, o estado de alienação, o tédio ou o medo que o isolamento lhe provoca.
Faz uma pausa, dá alguns passos no quarto, com a vaga desconfiança de que se está tornando aborrecido. Mas continua:
— Estou chegando à conclusão de que um dos principais objetivos do romancista é o de criar, na medida de suas possibilidades, meios de comunicação entre as ilhas de seu arquipélago… construir pontes… inventar uma linguagem, tudo isto sem esquecer que é um artista, e não um propagandista político, um profeta religioso ou um mero amanuense…”
ÉRICO VERÍSSIMO in Tempo e o Vento: Arquipélago Vol.1 (1962)
Putz! Genial.
É bem isso mesmo.