O principal obstáculo para realmente viver a vida é o próprio ego. N.N.
“Ao bife com batatas! – exclama Roque Bandeira, puxando o amigo pelo braço. Lado a lado começam a descer pela rua quase deserta, na direção da Confeitaria Schnitzler. Com o rabo dos olhos Floriano observa o amigo. Tio Bicho vai na postura costumeira, as mãos trançadas às costas, o casaco aberto, o passinho leve e meio claudicante de quem tem problemas com os joanetes.
– Antes de mais nada – torna a falar Bandeira – não podes, não deves julgar teu pai à luz de suas fornicações extra matrimoniais. O Dr. Rodrigo, homem mais do espaço do que do tempo, agarrou a vida a unha com coragem e, certo ou errado (quem poderá dizer?). fez alguma coisa com ela. E aqui estás tu a simplificar o problema, a olhar apenas um de seus múltiplos aspectos. Pensa bem no que vou te dizer. É um erro subordinar a existência à função. O Dr. Rodrigo não é apenas o Grande Fornicador. Ou o Amigo do Ditador. Ou o Jogador de Roleta do Cassino da Urca. Ou o Mau Marido. É tudo isso e mais um milhão de outras coisas. O que foi ontem não é mais hoje. O que era há dois minutos não é mais agora e não será no minuto seguinte.
– Eu sei, eu sei …
– Cala a boca. Escuta. O que importa agora é isto: Teu pai está condenado. Teu pai vai morrer. É questão de dias, semanas, talvez meses, quando muito. Eu sei, tu sabes e ele também sabe.
Roque estaca, volta-se para o amigo, segura-o fortemente pelos ombros e diz:
– Lá está o teu Velho agora sozinho no quarto, decerto pensando na Torta. Morrer é uma idéia medonha para qualquer um, especialmente para quem como ele tanto ama a vida. Agora eu te pergunto, que gesto fizeste ou vais fazer que esteja à altura deste grande, grave momento?
– Já te disse que estou pensando em ter uma conversa amiga mas também muito franca com ele.
– Eu sei. Tu disseste. Tu repetes. Mas já foste? Já foste?
– Não, mas …
– Olha que não tens muito tempo. Amanhã pode ser tarde demais. Se queres mesmo acabar de nascer, tens de ajustar contas com teu pai no sentido mais cordial e mais legítimo da expressão, através da aceitação plena do que ele é. Não se trata de ir pedir-lhe perdão ou levar-lhe o teu perdão. O que tu tens de fazer, homem, é um gesto de amor, um gesto de amor!
Diz estas palavras quase a gritar. e sua voz ergue-se na noite quieta. Um pouco impaciente, Floriano desvencilha-se do amigo e diz:
– Não precisas repetir o que eu já te tenho dito tantas vezes. Eu sei muito bem o que devo fazer, o que quero fazer. Mas tu bem sabes que não é fácil. Conheces o Velho. Há certos assuntos em que não posso tocar sem irritá-lo, e isso agora seria perigoso.
Retomam a marcha e dão alguns passos em silêncio. Em cima do telhado da casa da Mona Lisa um gato cinzento passeia.
Mais calmo. Roque prossegue:
– Tudo depende de jeito. Entendam-se como seres humanos. Manda pro diabo o código do Sobrado. Abre o coração para o Velho. Mas abre também as tripas, sem medo. Se for necessário, primeiro insultem-se, digam-se nomes feios, desabafem; numa palavra: limpem o terreno para o entendimento final. O importante é que depois fiquem os dois um diante do outro, psicologicamente despidos, nus como recém-nascidos. Estou certo de que nessa hora algo vai acontecer, algo tão grande como existir ou morrer …
– Ou nascer de novo – completa Floriano.
– Sim. Terminado o diálogo terás cortado para sempre teu cordão umbilical. Te aconselho que o enterres no quintal, ao pé do marmeleiroda-índia. E desse momento em diante passarás a ser o teu próprio pai.
– E ao mesmo tempo o meu próprio filho.
– Sim, e teu próprio Espírito Santo. Por que não, hein? Por que não?”
Tempo e o Vento: Arquipélago Vol.2, ÉRICO VERÍSSIMO